Friday 19 February 2010

Shurikens

Eu considero-me uma pessoa mais ou menos simpática. Como tal, tendo uma família bastante grande é-me normal que, num regresso de uma estadia num país mais ou menos perdido no fundo da terra, eu traga alguns presentes para aqueles que ficaram no Pátria. Ontem estive até às seis da manhã, hora em que deixei Tenri, a organizar e optimizar as malas. A regra dos vinte quilos, que apenas permite a um viajante fazer o /check in/ de /uma/ mala com vinte quilos, fez-me organizar as coisas da maneira que julguei mais apropriada. Na mala grande, a que faria o check in iria tudo o que fosse mais ou menos inquebrável e na outra, mais pequena, iriam todas as coisas que se partem, ou seja, os presentes e as coisas pesadas, pois essa levá-la-ia comigo em todas as alturas, salvando-a de um eventual diagnostico de peso. Assim foi, no fim da noite e depois de uma mísera hora de sono tinha uma mala grande de vinte ponto seis quilos e uma pequena pesadíssima e a abarrotar. Isto, claro, sem contar com o portátil e um saquinho com coisas em não puderam ir em mais lado nenhum.
Feito isso, saio de Tenri no comboio, já populado de senhoras de fato e meninas de uniforme, das seis e vinte e cinco, a caminho de Nara. Chego à cidade dos veados sagrados às seis e quarenta e seis e, mesmo à frente da estação, por volta das sete, apanho o autocarro especial para o aeroporto cujo bilhete já tinha comigo. O aeroporto de Kansai, uma maravilha da construção civil e um dos poucos aeroportos do mundo a ser construído em cima de água, fica longe e a ele chego por volta das oito e quarenta e seis. O meu avião parte às onze e, portanto, respeitando a regra do está-lá-duas-horas-antes, dirijo-me ao check it. Eles não causam problemas com o facto de ter uma mala, um portátil e um saco e tranquilamente coloco a mala dos vinte quilos nos cuidados de outros: encontrá-la-ei em Portugal com certeza! Depois, e como me avisaram que o security check estava a demorar dirijo-me para lá. Como já é normal, ponho a mala num cesto, o portátil noutro, a mala do portátil noutro, o casado noutro e os pertences dos bolsos noutro. Desta vez não tinha botas, portanto deixei-me estar calçado. Isto de saber as regras tem vantagens e, portanto, foi rapidamente que se confirmou que poderia passar. Uma espera pequena, umas coisas feitas no portátil e por volta das onze estava a levantar voo e olhar pela janela para a região de Kansai lá em baixo. As treze horas que se seguiram foram um misto de refeições de avião, dormitar, ver uns filmes, ficar no banco pequenino e olhar pela janela para as saudosas neves de Hokkaido, as nuvens fofinhas e os céus azul acima do mau tempo de inverno que cobre Rússia e Europa.
Por fim, e porque as diferenças horárias, desta vez, estavam comigo e chego a Frankfurt, Alemanha, às três e meia da tarde. Confirmando os meus horários, vejo que o voo para Portugal é às nove e trinta e cinco. Decido, por isso, sair e ver como é Frankfurt: seis horas é mais do que suficiente para ir, voltar e estar chegar ao aeroporto a tempo de, serenamente, apanhar o voo para Portugal. É claro que não foi assim tão simples – se o fosse este post seria muito diferente – e, chegado à saída do aeroporto, depois de confirmar que era possível sair do mesmo, vejo que não tenho grandes posses financeiras, japonesas ou europeias. O preço de colocar as malas num sítio seguro, da viagem de ida e volta para a cidade e um possível jantar, ultrapassava as minhas parcas possibilidades e, portanto, pensando que o tempo de chuva e vento não convida grandes passeios, resolvi reentrar no aeroporto para esperar, preferencialmente junto de uma ficha de electricidade, o meu longínquo voo.
Se a ligação entre os voos não fosse tão longa, se o meu interesse por viagens não fosse tão grande ou se a minha simpática fosse menor, o incidente que se teria sido evitado. Por outro lado, se o meu dinheiro estivesse em melhores dias, se o tempo estivesse melhor ou se eu tivesse grandes planos para visitar Frankfurt, a situação ter-se-ia tornado muito pior. Nem sei o que dizer… O procedimento é internacional portanto, fazendo outro security check, faço exactamente o mesmo que tinha feito à algumas horas atrás: coloco mala, portátil, mala do portátil, casaco e pertences em cestos diferentes e passo para o voo. Se já tinha feito um, com exactamente as mesmas coisas, exactamente com o mesmo comportamento, nada iria correr mal não é? Não, não é. A mala dos presentes atrasa-se e, depois de dois seguranças falarem, em alemão, com uma polícia, pedem-me para a abrir e retirar algo que, pelo raio-X “parecia perigoso”. Um conselho amigável: nunca passem por um security check alemão com shurikens verdadeiras feitas de ferro, mesmo que essas sejam pouco afiadas, tenham sido compradas num parque de diversões e seja um presente para os vossos irmãos. Disseram-me que era uma “felony” a posse de “armas” assim na Alemanha e a gravidade da situação ficou bem explicita quando chegaram dois polícias, totalmente vestidos e armados a rigor com um sem número de papéis que tinham termos como “advogado”, “depoimento”, “declaração” e “direitos”. Nesta altura eu já não estava muito preocupado em levar as ditas “armas” para casa e, se fosse uma pessoa mais nervosa slash stressada estava à beira de um ataque de nervos. Ainda pior: o meu telemóvel português está sem bateria à meses e o japonês, obviamente, não tem rede na Alemanha. Depois de ler os papéis e de fazer um em sem número de perguntas aos super-profissionais polícias que, muitas vezes, só me diziam que não lhes era permitido dar-me conselhos naquela situação, entendi que a ideia era eu ou fazer um depoimento, ou escolher não fazer um depoimento, ou dizer que requeria a ali e agora presença do meu advogado, ou fazer um depoimento por escrito, ou outra coisa que não me lembro mas que não devia ser importante. Além disso podia dizer se me considerava ou não culpado do “crime”. Fosse qual fosse a minha escolha, a ocorrência seria mandada para um advogado que depois me contactaria, esclareceria a história comigo e, se necessário, com o meu advogado e, por fim, decidiria se tinha de pagar multa ou ficava totalmente ilibado. Felizmente ninguém falou em prisão, mas já nem me surpreendia muito, dado o surreal da situação. Acabei por, numa jogada de demonstrar boa fé, por me ser difícil contactar seja quem for, e por achar que a justiça estava comigo, escrever um depoimento a contar a história que já conhecem e não colocar nada nas cruzes do culpado ou não: não fosse o diabo tece-las.
Depois de quase duas horas de perguntas e papeis e confirmações e oh-my-god-como-é-que-vim-aqui-parar estava tudo tratado e os polícias, meio ironicamente, meio complacentemente, desejaram-me, se possível, a continuação de uma boa viagem. Finalmente, fui comprar um cachorro, dirigi-me para a porta de embarque, encontrei uma ficha, tirei o portátil e escrevi esta história. O embarque para Portugal é daqui a setenta e um minutos, vamos ver se tudo corre como o esperado.

No comments:

Post a Comment